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O espetáculo “As Aventuras do Dindooo: o Musical” foi uma grande surpresa das poucas peças em cartaz para a infância no mês de outubro de 2023 em São Luís/MA. Confesso que vejo a cidade retomando suas atividades teatrais pós-pandemia e pós-governo de desmonte cultural. A cena ainda segue em resistência por resistir contra as dificuldades de produção no Maranhão, que são muitas.

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Em meio a uma produção local sempre presa às mesmas montagens de contos de fadas, histórias ditas clássicas da literatura para infância, e etc., este poderoso musical estreia com muita coragem, fortalecido em uma equipe de artistas super comprometidos que têm minha admiração para além da amizade que temos.

Antes de tudo, deixo registrado que aqui se encontra uma crítica amorosa. A peça parte das composições musicais de Bruno Batista (Dindoo), que inspira a narrativa central. Esta gira em torno de um padrinho tentando conquistar sua afilhada.

Tiago Andrade estreia na direção/encenação nos oferecendo a oportunidade de pensar produções para as crianças de maneira bem trabalhada e encarada com seriedade, equilibrando a potência comercial do teatro para infância com o bom acabamento e escolhas acertadas.

A começar pelas escolhas estéticas, a exemplo dos usos de cabeções, elemento mal usado e abusado em teatros comerciais e montagens de grandes produções onde Mônicas, Patrulha Canina, Sonic e Animais acabam virando um show de horrores, aqui Tiago se arrisca e seu uso se mostra bem acertado, devido ao trabalho de corpo dos atores focado nos gestos dilatados, espontâneos e que tratam os cabeções como uma grande máscara neutra, onde o corpo precisa dizer as emoções, já que os cabeções possuem uma expressão facial única.

Aqui os movimentos do corpo não são ilustrativos e superficiais, eles servem ao entendimento das expressões que o público deve ler sem cair em clichês exagerados. Este trabalho de preparação corporal dos atores acompanha as coreografias assinadas por Dandara Ferreira, se utilizando da distribuição dos espaços, interação entre personagens, movimentos expressivos e envolventes. Tive a sensação de que Dandara vê o dançar como uma brincadeira, combinando movimentos nas letras das músicas com muita fluidez. Aqui as coreografias tratam o corpo como brinquedo, os personagens Dindo, Titi, dois construtores e uma narradora, dançam juntos, se dividem em coreografias majoritariamente frontais sem deixar de explorar as lateralidades e as possibilidades do corpo que se forma no coletivo, muito diferente dos musicais que se limitam a abrir dedos e deixar as pernas abertas na boca de cena. Cada música é dançada como uma brincadeira que não queremos que acabe.

Quanto aos personagens, vemos uma construção bem corajosa da criança Titi, interpretada por Mariana Madeira, que cativa com suas mãos na cintura e suas posições nos fazendo imaginar as expressões da Titi para situação. Titi é uma criança explicitamente racializada em seus traços físicos, trazendo muita identificação para a infância maranhense, com uma população majoritariamente negra. Junto com Dindooo, interpretado pelo ator Roby Falcão, a dupla central está formada, ambos usam a grande máscara que preenche a cena, o rico trabalho de seus corpos até nos faz esquecer essa diferença de tamanho entre corpo e cabeça, realmente vemos as cabeças tornarem-se parte e não à parte do corpo.

Roby faz um excelente equilíbrio entre seu corpo, a narração do personagem feita pelo próprio Tiago Andrade e as coreografias, nos fazendo quase esquecer dessa engrenagem voz/corpo feita por pessoas distintas, em cena só vemos o Dindoo. O mesmo acontece com Titi, cuja narração é feita pela Angelina, a Titi da vida real. Angelina se mostra através de sua voz super à vontade para explorar o colorido das frases, sua voz suave de criança e suas entonações bem elaboradas encantam e nos envolvem em sua relação com o Dindoo, é cativante ver Angelina narrando a personagem inspirada nela mesma e explorando suas potencialidades de atuação na dublagem.

Na trama, dois personagens estão a serviço da narrativa, uma espécie de construtores interpretados por Fernanda Marques e Gabriel Braga, que acompanham as coreografias e ambientam toda a trama, a minha sensação era de um jogo de palhaçaria entre eles que poderia ser melhor explorado, a cena inicial de abertura que os dois fazem é uma proposta que precisa ser encarada com mais comicidade e ousadia apostando no entrosamento que ambos criaram entre si.

Quanto às coreografias, confesso que fiquei encantada com a leveza e modo como dançavam, onde até o cansaço de dançar uma cena longa era mostrado explicitamente de forma bem engraçada, dos olhares entre eles era notável a vitalidade dessa construção corporal, acredito que essa relação está para ser descoberta em suas potencialidades pois exceto nas coreografias esses dois personagens são pouco utilizados e acabam se tornando meramente ilustrativos quando não há música. Fechando o elenco, há a narradora, interpretada por Lara Moura, que canta as músicas ao vivo e alinha a trama em muitos momentos. A narração é um recurso extensivamente utilizado no teatro para infância, principalmente em produções que visem contar histórias e não apresentá-las ignorando a ação teatral, aqui a narradora tem tons de coringa, intervém nos diálogos, dança junto, canta e principalmente traz os respiros entre uma música e outra, é uma personagem muito estruturante na peça, feita com muito primor pela atriz. É a partir dela que vou entrar na discussão do texto.

“As aventuras do dindooo: o musical” parte de um álbum de composições muito delicadas que tratam de várias situações da infância, as músicas com temáticas diversas nos envolvem e quando nos damos conta estamos cantarolando o refrão. Imagino que criar um texto dramático para músicas tão diferentes entre si seja um desafio, e este texto amarrado conseguiu proezas ao diminuir a distância entre momento de cena, momento de música e dança.

Os diálogos entre Dindoo e Titi são sempre introdutórios às músicas, o jogo está principalmente no Dindoo tentando conquistar Titi, esses diálogos são simples e diretos, com muitas frases para arrancar risos da plateia. É com a narração que a estrutura dramática é sustentada, ela que aponta como está o jogo de conquista entre Dindo e Titi, e dá seguimento às cenas. Algumas vezes o texto da narração cai no previsível repetindo coisas que o público acabou de ver, outras ela nos cativa e nos introduz algumas informações que não estão nos diálogos, mas uma coisa é certa entre cantar, dançar, narrar e organizar tudo feito muito bem pela atriz é visível que sem a narradora, a peça não anda, justamente por essa fragilidade dramatúrgica.

Enquanto proposta de apresentar as músicas e oferecer às crianças um show musical com doses teatrais, este texto cumpre muito bem sua função, mas se deslocado deste conceito o texto é pouco dramático, não apresenta conflitos gerais, parte de uma premissa: Dindo conquistar Titi, o que não é o bastante para sustentar um conflito dramático, existe uma pequena iluminação de conflito interno de Titi de ceder ou não ao Dindo mas muito sutil, ambos personagens são bastante alegóricos, um é uma criança e o outro é um adulto, o que facilita a identificação mas também dificulta já que esses personagens apresentam poucas características subjetivas e acabam entrando no padrão de construções de personagens para infância que temos no teatro brasileiro.

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Um ganho do texto é a proposta de uma narrativa diferenciada de relações familiares que em geral é entre pais e filhos, ou entre irmãos, não é todo dia que vemos uma relação entre padrinho e afilhada no teatro, este também é um ponto bastante positivo afinal é baseado em uma situação vivida pelo compositor e sua afilhada, aqui este texto tem fortes elementos autoficcionais, e possui muito potencial se explorar mais ainda este caminho.

Por último, ressalto pontos críticos do texto é a cena final em que narradora dá uma espécie de moral da história que é verbalizada e na minha visão presta um desserviço para a narrativa, já que ir ao teatro não é para aprender lições morais, um personagem não precisa ser professoral e tenho certeza que mesmo sem essa lição verbalizada as crianças já iriam sair com a sensação de ver uma amizade que se formou entre Dindo e Titi, o que se aprende e se sente com a peça deve dizer respeito somente a liberdade de apreciação das crianças, mas isso em nada diminui a riqueza da construção que foi se formando ao longo da peça.

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Os objetos de Cena nos ganham pela simplicidade, bancos retráteis coloridos tapetes de E.V.A. e bola montam um gato, e todos os elementos lembram o quarto de uma criança que recria tudo à sua imaginação, os poucos objetos são utilizados em momentos chave e mostram sua função cênica em momentos diversos à contrapondo da ausência de cenários ou presença de painéis puramente ilustrativos de produções locais que acompanhei no mesmo período. A imagem cênica ganha um ar ainda mais preenchido com a banda ao fundo, que se mostra presente em toda a cena de maneira muito natural.

Não posso deixar de falar do espetáculo à parte que é a iluminação, recurso cênico geralmente encarado como supérfluo nas produções para infância, aqui no trabalho de Abel Lopez tem seu protagonismo usando e abusando nas cores alinhadas às sensações das músicas, uso de luz e sombra, combinações em degradês e preenchimentos com cores dão um ar divertido e agradável a toda cena, mostrando uma iluminação à serviço do todo não apenas para fazermos ver os atores equilibrando muito bem a ideia de show musical e e teatralidade.

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Tenho a sensação de que toda a equipe de montagem deste espetáculo o encarou como uma produção séria, desviando na medida do possível de todas as armadilhas das produções canastronas de teatro para a infância que é uma questão problemática no Brasil até hoje.

Infelizmente muitas produções teatrais para infância ainda subestimam a inteligência das crianças e agem de maneira predatória puramente comercial, muitas vezes vemos esse fazer teatral caminhando num caminho apartado do que fazemos para o “teatro dos adultos” e nesse sentido “As Aventuras do Dindooo: o Musical” tem se mostrado um caminho de diálogo muito corajoso se alinhando às tendências contemporâneas explorando as potencialidades dos atores e de olhos atentos às infâncias brasileiras, no plural. Que seja de vida longa este espetáculo tão especial cujas músicas e cenas ainda colorem minhas lembranças!

Recife, novembro de 2023

Necylia Escritora maranhense, artista e pesquisadora de teatro e circo

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