📝 Este é um editorial do Portal Cubo.
As opiniões aqui expressas refletem a visão do Cubo e têm como objetivo promover o debate crítico sobre temas relevantes à sociedade.
Uma pesquisa recente do Datafolha trouxe à tona um dado que causou perplexidade nas redações e nos círculos políticos: 34% dos que se dizem petistas se declaram de direita ou centro-direita, enquanto 14% dos bolsonaristas se consideram de esquerda ou centro-esquerda. À primeira vista, soa como um contrassenso, uma contradição que desafia a lógica binária que insistem em nos impor. Alguém que vota no PT ser de direita pode até ser explicado pelo pavor ao bolsonarismo. Mas como entender um bolsonarista de esquerda? Não seria estar contra si mesmo?
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A pergunta, porém, revela mais sobre nossa miopia analítica do que sobre o eleitor. Ela parte de um pressuposto equivocado: o de que as legendas e lideranças carismáticas de hoje carregam, de forma pura e inequívoca, o conteúdo ideológico de outrora. O que os dados sinalizam, na verdade, é o profundo esvaziamento programático da política nacional e a transformação de identidades políticas em tribos culturais e afetivas.
O PT, partido nascido das lutas sindicais e com um projeto histórico de transformação social, hoje é visto por uma parcela significativa de seus votantes não como um veículo do socialismo democrático, mas sim como o último bastião institucional contra um projeto de poder visto como autoritário, obscurantista e predatório. Votar no Lula, para muitos, deixou de ser uma adesão a um programa de esquerda e tornou-se um ato de defesa da democracia, dos pobres e da normalidade institucional. É uma adesão por oposição, onde o conteúdo ideológico clássico pode ficar em segundo plano.
Já o fenômeno do “bolsonarista de esquerda” é ainda mais revelador do colapso dos marcadores tradicionais. Como pode alguém que apoia um projeto visceralmente anti-esquerdista, de desmonte do Estado social, de exaltação das armas e de ataques às minorias, se considerar de esquerda? A resposta pode estar menos na economia e mais no cultural. O bolsonarismo soube capturar, com uma narrativa eficaz e grosseira, um sentimento de abandono e revolta de uma parcela da classe trabalhadora que se sente desprezada pela “esquerda cosmopolita”. Para estes, o discurso contra “as elites” (entendidas agora como a mídia, o Judiciário e os políticos “tradicionais”) e um certo nacionalismo rasteiro podem ressoar mais do que a defesa abstrata de políticas sociais que, na percepção deles, não chegam ou são mal administradas.
O que estamos testemunhando é a falência da política como debate de projetos de sociedade. As grandes siglas se transformaram em marcas de identificação tribal, enquanto o espectro ideológico virou uma colcha de retalhos de valores desconexos. A esquerda, em particular, precisa encarar este desafio com urgência. Não basta ser o antídoto ao fascismo. É preciso reconstruir uma narrativa convincente que reconecte a defesa intransigente da democracia e dos direitos com um projeto econômico claro de soberania nacional, distribuição de renda e justiça social. Um projeto que fale diretamente ao povo, explicando quem paga a conta e quem se beneficia.
A pesquisa do Datafolha não mostra um povo irracional. Mostra um povo desorientado, navegando em um mar de desinformação, de desencanto e de ofertas políticas pobres. Mostra que os rótulos “esquerda” e “direita”, tal como usados no calor da guerra eleitoral, já não dão conta de explicar as complexas e contraditórias identidades do Brasil real. Ignorar esse descompasso é insistir em analisar um terremoto com uma régua. O desafio, agora, é escutar o que essas contradições gritam: a necessidade premente de se repolitizar o debate, com conteúdo, clareza e honestidade. Antes que as tribos substituam de vez as ideias.


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