Em um país onde mais da metade da população se declara preta ou parda, o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, obrigatório por lei há mais de duas décadas, ainda esbarra no desconhecimento, na negligência e na resistência de muitas instituições de ensino. A Lei 10.639/03, que tornou esse conteúdo parte do currículo escolar em todas as escolas do país, públicas e privadas, não saiu integralmente do papel, conforme relatam mestres da cultura popular que estão na linha de frente dessa batalha por memória e representação.
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Isabel Casimira, Rainha de Congo das Guardas de Congo e Moçambique Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário e dirigente da Federação dos Congados de Minas Gerais, é incisiva ao avaliar a aplicação da norma. “Tem escola que finge que faz, tem escola que nem finge. Tem algumas que colocam uma estante com alguns livrinhos. Para que? Se alguém pergunta, respondem ‘Nós temos, olha nossa biblioteca’, mas é fingimento”, afirma.
Ela, que também é codiretora do filme premiado “A Rainha Nzinga Chegou” (2019), participou de debates na 14ª edição do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes, ao lado de Claudinei Matias do Nascimento, o Mestre-Capitão Prego do Congado Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia. Juntos, defenderam a educação como a ferramenta fundamental para combater a intolerância e evitar o apagamento das contribuições do povo negro.
O desafio na sala de aula
A implementação da lei esbarra na falta de formação dos próprios educadores. Isabel Casimira realiza palestras em escolas para auxiliar na capacitação de professores. Ela relata que, muitas vezes, os docentes não dominam o assunto e propõe ajustes simples para evitar generalizações prejudiciais. “Quando a professora vai falar, por exemplo, de candomblé e diz que ‘povo de candomblé veste vermelho’. Qual o povo? Quantos povos têm? (…) Se ela não sabe, ela não pode falar do ‘povo de candomblé’. Ela tem que pôr junto [o termo] ‘alguns’”, exemplifica. Essa nuance, segundo ela, evita a disseminação de equívocos.
Mestre Prego, por sua vez, vive uma contradição: é procurado por escolas de outros estados, como o Rio de Janeiro, para ministrar oficinas de toque de tambor e canto, mas não é valorizado em seu próprio município. “Nas escolas do município ninguém tem interesse de falar sobre a cultura dos nossos povos negros e tampouco dos indígenas”, lamenta.
Intolerância religiosa e apagamento histórico
O desconhecimento gera preconceito. Mestre Prego relata que seu grupo, que compartilha a devoção a Nossa Senhora do Rosário com a Igreja Católica, foi proibido de entrar em uma igreja em Tiradentes por carregar o nome e a bandeira da Escrava Anastácia. “A igreja foi feita pelos nossos irmãos, para a gente louvar”, disse, em um dia em que recebiam a Rainha Conga de Minas Gerais.
Ele ressalta o apagamento da história local: a região teve 22 mil pessoas escravizadas, responsáveis pela pavimentação das ruas de pedra e pela construção de igrejas e casarões – narrativa que não integra as rotas turísticas tradicionais.
Isabel defende que a escola é o lugar para educar para o respeito. “A pessoa pode ser evangélica, budista, umbandista, católica. Independentemente do que ela seja, se ela for educada para respeitar o sagrado alheio, ela é uma boa pessoa”, afirma. “Assim como alguém chama Deus de Jeová, de Allah… o nosso jeito de falar com Deus é chamar ele de Zambi”.
Reconhecimento e resistência
Um marco importante para essa cultura ocorreu em 2025, quando o congado foi finalmente registrado como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Iphan, sob o título “Saberes do Rosário: Reinados, Congados e Congadas”. O reconhecimento formal, após 17 anos de espera, consolida tradições com mais de 300 anos, de fundamental importância para a ancestralidade de matriz africana no Brasil.
O Festival Artes Vertentes, que segue até o dia 21 em Tiradentes, São João del Rei e Bichinho, tem como tema “Entre as margens do Atlântico”, promovendo o diálogo entre América, África e Europa, e integra a Temporada França-Brasil.


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